O imprevisível destino de Rogério, o farmacêutico sem medo de mudar receitas

Brasil
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Daniel Pereira Milazzo

De uma cidade pequena do interior, a vida de Rogério Bilheiro foi serpenteando por caminhos cada vez mais longos, confrontando-o com provações inesperadas e abrindo portas improváveis. História de um farmacêutico que prescreve perseverança.

Serendipity. O termo em inglês foi cunhado pelo escritor britânico Horace Walpole em 1754 e levou apenas oito minutos para se intrometer na nossa conversa. “É quando as coisas acontecem no momento certo, por coincidência, e é justamente aquilo que você precisa”, explica Rogério, encontrando nessa palavra a melhor maneira de descrever seu percurso.

Rogério vem de Miraí, cidade mineira de 14 mil habitantes. Com 16 anos, foi estudar em Viçosa, a 80 km dali. Em seguida, ganhou a capital Belo Horizonte (a mais de 300 km da cidade natal) para estudar Farmácia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Depois de formado, em 2003 ele esticou um pouquinho mais e chegou a Divinópolis, onde começou a dar aulas de farmácia e enfermagem. E onde conheceu a enfermeira Juliana, que se tornaria sua esposa e mãe de seu filho Arthur, hoje com 4 anos.

Para estudar mais e se aperfeiçoar como professor, Rogério decidiu fazer um mestrado em Fisiologia e Farmacologia na UFMG. Enquanto isso, ia tomando forma em paralelo o projeto de imigrar para o Canadá, um desejo ambicioso de alguém que, desde novo, queria conhecer a vida fora do Brasil. “O mais longe que eu tinha ido era a Bahia!”, lembra ele rindo.

No entanto, a primeira tentativa não deu certo. A resposta do governo canadense trazia a recusa acompanhada de um “Merci de votre intérêt / Thank you for your interest” duro de engolir. No entanto, a carta oficial também sugeria que eles tentassem o processo novamente, só que dessa vez elegendo Juliana como a requerente principal, dada a demanda quebequense por profissionais de enfermagem. Além de positiva, a resposta foi rápida. Quando o casal recebeu a residência permanente, em 2011, Rogério ainda estava concluindo o mestrado.

“Adiantei o máximo que dava para adiantar no Brasil, ainda faltava escrever um pouco, aí apliquei para o doutorado em Farmacologia aqui na UdeM. E, surpreendentemente, fui aceito!” Ele recebeu uma admissão condicional, ou seja, teria alguns meses para concluir o mestrado antes de passar à próxima etapa.

Uma vez instalados em Montreal, o doutorado ia muito bem, inclusive Rogério havia conseguido uma bolsa junto ao CRCHUM, até chegar uma notícia inesperada. Em outubro de 2012, seu pai adoece subitamente e vem a falecer.

“Não sei se isso acontece com todo mundo, mas, em momentos de perdas fortes, a gente reflete sobre muitas coisas no sentido da nossa vida. E meu filho estava para nascer. Tive que refletir e ser muito honesto comigo mesmo.” Sentindo que a família precisava deles e que eles precisavam da família, Rogério e Juliana decidiram voltar para o Brasil.

Antes de embarcar, ainda como doutorando, ele passou numa entrevista para trabalhar como embaixador da UdeM num projeto que estava dando seus primeiros passos. No Brasil, ele visitou várias universidades como representante da UdeM e continuou trabalhando a distância nas ferramentas digitais do projeto. Ele também voltou a dar aulas, porém, algo importante havia mudado.

“Depois que você vive aqui [no Canadá] um ano, você não vai ser mais o mesmo e o país [de origem] também mudou. E os dois vão normalmente ter mudado em direções diferentes. De volta ao Brasil, eu sentia como se alguma coisa tivesse quebrado em mim. Pensa num brinquedo que quebrou e não funciona mais. Eu tentava flutuar, mas eu só afundava.” Rogério conta que a readaptação ao cotidiano brasileiro foi difícil. A espécie de resignação que ele percebia nas pessoas diante do que não vai bem e alguns episódios de violência próximos a ele o fizeram ponderar a volta a Montreal. “Eu já estava um pouco ansioso e não tinha perspectiva de como eu teria lá a tranquilidade de espírito que eu tinha aqui para funcionar bem em sociedade.”

Voltaram a Montreal em abril de 2014. Rogério continuou sendo embaixador da UdeM, um trabalho do qual ele se orgulha e qualifica como muito gratificante, intenso e responsável por um grande amadurecimento pessoal e profissional. O doutorado acabou ficando pelo caminho, mas todas as mudanças levaram-no a reorientar suas escolhas em direção a seu principal objetivo profissional: atender as pessoas.

Ele explica que, no Canadá, o farmacêutico tem bastante autonomia. “Temos que conhecer muito do dossiê do paciente. Analisar o colesterol, o risco cardíaco... porque aqui a gente tem o direito de ajustar os medicamentos. Aqui, o farmacêutico está acostumado a ter contato frequente com o médico.”

Para alcançar o objetivo de poder exercer plenamente sua profissão, seu novo percurso passa pela Qualificação em Farmácia, um programa de 16 meses voltado a farmacêuticos estrangeiros que já sejam residentes permanentes no Canadá. Entretanto, engana-se quem acha que trocar o doutorado por um curso mais curto tenha facilitado as coisas. As vagas neste programa são limitadas e Rogério precisou de duas tentativas para garantir a sua. “There’s no easy path, man!”, frisa esse mineiro obstinado, que aliás também já foi professor de inglês.

“É condensado. É exigente. E tem muita coisa que eu nunca vi”, conta. Após as aulas teóricas e práticas, Rogério terá que fazer um estágio, ao fim do qual ele automaticamente ingressará na Ordem dos Farmacêuticos do Quebec para oficialmente tornar-se, no lugar certo e no momento certo, a pessoa certa para ajudar os outros. 

Daniel Pereira Milazzo
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Daniel é jornalista e doutorando em Literatura Comparada na Université de Montréal, onde pesquisa a relação do homem com a eternidade. Eclético, ele se interessa tanto por Tintin quanto por Spinoza, gosta tanto de futebol quanto de música clássica. Apaixonado por línguas, fala português, inglês, francês e espanhol, entende um pouco de italiano e está estudando alemão…